“Suportem-se uns aos
outros e perdoem as queixas que tiverem uns contra os outros. Perdoem como o
Senhor lhes perdoou.” Colossenses 3:13
“Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.”
Machado de Assis
Nos tempos atuais o ódio e o rancor proliferam em nossa
sociedade, isto em todas as esferas, como na política, e em todos os relacionamentos
sociais, dentro de nossa casa, na rua e no trabalho. É triste não podermos
compartilhar nosso posicionamento político sem ser taxado de alguma coisa e ao
mesmo tempo odiado por um grupo que pensa ao contrário; é terrível você ser
identificado como de uma religião e ser criticado e odiado por pessoas que têm
uma fé diferente da sua. O ódio anda de mãos dadas com o rancor, que é, na
realidade, uma emoção não resolvida, por conta de uma situação que causou o mal
estar e que não enfrentamos, e ajuda alimentar o rancor.
Estes dias ouvi em uma palestra, uma pessoa que falava sobre
“restauração” e comentou que estava sendo restaurada de certos sentimentos de
ódio que sentia pelo seu pai. Durante sua fala, a palavra “desgraçado” em
relação ao seu pai, foi proferida várias vezes. Ter um pai que lhe fez muito
mal, é algo triste, vemos e testemunhamos em nossa sociedade pais
irresponsáveis, mas, por mais cruel, que tenha sido esta figura paterna, não
merece ser odiado, aliás, ninguém deveria “desgraçar” um pai. Apesar de ter
todos os motivos possíveis, onde pais estupram, agridem, menosprezam...
É uma situação triste. Pois, o mal é inerente a todos. O “mal paterno-materno” é potencializado,
pois onde deveria ser fonte de amor aos filhos, torna-se decepção. Não imagino
passar por tal situação, mas quem passa ou passou, deve ser muito difícil lidar
com a relação tríplice de ódio-rancor-perdão.
O ódio e o rancor está inserido dentro de nossos corações de
uma forma ou de outra. Mesmo que não tenhamos motivo algum, tudo se torna
pretexto. Clarice Lispector em sua obra “O Mineirinho”, retrata bem esta
vontade, quando vê um criminoso sendo morto pela polícia com 13 tiros, quando
só uma bala já bastava, e os outros 12 aconteciam por razões de ódio e rancor e
a última bala é minha, é nossa, pois nós matamos milhares de “mineirinhos”
todos os dias.
Esta relação ódio-rancor-perdão é retratada de uma forma
muito interessante no filme 12 Angry Men, do diretor Sidney Lumet (1958), aqui
no Brasil saiu com o título “12 homens e uma sentença”. O filme é uma lição
jurídica, mais vai muito além. Ela desmascara todos os nossos defeitos como
seres humanos e desmascara os pecados capitais de cada membro do júri (Juri
Popular), revela-se que o povo tem os mesmos defeitos do réu. Ou seja, todos
nós somos culpados dos crimes sociais.
Como diz a banda rap nacional, GOG "A reconstituição do
crime deve ser feita anos antes". O ódio e o rancor está enraizado em
nossas peles, e se nada fizermos isto se prolifera, pois está começando lá na
base, na escola. Testemunhamos um Estado ausente que sucateia a educação em todo
país e as crianças acabam por se transformar futuramente em pessoas rancorosas.
Acredito é é necessário deletar o que ficou para trás e construir o novo, pois
de acordo com Honoré de Balzac, “O ódio tem melhor memória do que o amor”.
O décimo terceiro tiro me assassina - porquê eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
É, suponho que é em mim, como um dos representantes de nós, que devo procurar por que
esta doendo a morte de um facínora. E por que é que mais me adianta contar os treze tiros
que mataram Mineirinho do que os seus crimes. Perguntei a minha cozinheira o que
pensava sobre o assunto. Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar
de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber
como harmonizá-las.
Fatos irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta
compaixão da revolta. Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder
esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos
vivo. A cozinheira se fechou um pouco, vendo-me talvez como a justiça que se vinga. Com
alguma raiva de mim, que estava mexendo na sua alma, respondeu fria: 'O que eu sinto não
serve para se dizer. Quem não sabe que Mineirinho era criminoso? Mas tenho certeza de
que ele se salvou e já entrou no Céu.' Respondi-lhe que 'mais do que muita gente que não
matou'.
Por que?
No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida insubstituíveis, é a de que
não matarás. Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero
morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim.
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me fez ouvir o primeiro tiro com um alívio de
segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me
cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no
nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de
Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina - porquê
eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.
Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso
durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione,
exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o
meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido
que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto
isso dormimos e falsamente nos salvamos. Até que treze tiros nos acordem, e com horror
digo tarde demais - vinte e oito anos depois que Mineirinho nasceu - que ao homem
acuado, que a esse não nos matem. Porque sei que ele é o meu erro. E de uma vida inteira,
por Deus, o que se salva às vezes é apenas o erro, e eu sei que não nos salvaremos enquanto
nosso erro não nos for preciso.
Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu
fiz de um homem. Meu erro é o modo como vi a vida se abrir na sua carne e me espantei, e
vi a matéria de vida, placenta e sangue, a lama viva. Em Mineirinho se rebentou o meu
modo de viver. Como não amá-lo, se ele viveu até o décimo terceiro tiro o que eu dormia?
Sua assustada violência. Sua violência inocente - não nas conseqüências, mas em si
inocente como a de um filho de quem o pai não tomou conta. Tudo o que nele foi violência
é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos
entendermos.
Para que a casa não estremeça. A violência rebentada em Mineirinho que só
outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente,
poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se
3º ano Mineirinho Mineirinho Wilton fev/08
Nome: Nº: Turma:
Português
enchessem de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro
e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu.
Eu não quero esta casa.
Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e
cheia de desamparo e Mineirinho - essa coisa que move montanhas e é a mesma que o faz
gostar 'feito doido' de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita
que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama
perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo
ameaçador - em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma
que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas
porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, não me perdi, experimentei a perdição.
A justiça prévia, essa não me envergonharia.
Já era tempo de, com ironia ou não, sermos
mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porquê adivinhamos em nós
a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime . Continuo, porém,
esperando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem.
E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa
casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta trancada. Mas ela
está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma.
Foi fuzilado na sua
força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a
minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de
minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas
meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é
saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila, e
que os outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer. Tudo
isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa.
E sobretudo procurar
não entender.
Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo - uma
coisa que entende. Essa coisa que fica muda diante do homem sem o gorro e sem os
sapatos, e para tê-los ele roubou e matou; e fica muda diante do S. Jorge de ouro e
diamantes. Essa alguma coisa muita séria em mim fica ainda mais séria diante do homem
metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é o desespero em nós. Feito
doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara.
Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida
que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e
como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium
se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então
miseravelmente pela doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria
oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.
Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos
temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele
já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização.
Uma justiça prévia
que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é
porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que
nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode
ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e
aprovadamente um crime de fuzilamento.
Uma justiça que não se esqueça de que nós todos
somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo
nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um
longamente guardado. Na hora de matar um criminoso - nesse instante estásendo morto um
inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as
palavras que me fazem dormir tranqüila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos
refugiamos no abstrato.
O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno".
(“Mineirinho”, de Clarice Lispector, Para não esquecer, Editora Siciliano)